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Yvyrupa

a Terra uma só

Nos primórdios não havia nada,

Era um lugar sombrio.

Havia somente o oceano primitivo,

Lava.

Não havia vidas sequer.

 

Ainda não existia a Terra,

Nem o sol,

Nem a lua,

Nem as estrelas.

Permanece a noite originaria.

 

Uma luz infinita

Surge.

Através da noite originaria,

Surge

Nhamandu Tenondegua,

Nosso primeiro pai divino,

Com sabedoria infinita

E com amor infinito.

 

 Nhamandu gerou apyka,

Assent divino.

Nele surge a cocar divino de plumas,

Enfeitado com orvalho de flores:

Jeguaka poty yxapy rexa.

 

Por entre as plumagens de flores,

Maino,

O pássaro primitivo,

O colibri,

Voa no meio da noite originária.

 

Enquanto Nhamandu se desdobrava na noite originária…

O colibri, o pássaro primitive ofrecia o nectar do orvalho das flores para alimentar a seu criador Nhamandu.

 

… Nhamandu, o detentor de aurora, iluminava a noite originária com a luz do seu próprio coração.

… De sabedoria de Nhamandu, da sua chama e da sua neblina divina, nascem as belas palavras, ayu rapyta. Ele é o dono da palavra.

 

Através de seu poder e sabedoria divina, Nhamandu concebeu seu filho de coração grande, Nhamandu py’aguxu, Kuaray, o Sol, com seu grande poder de iluminação, para ser o pai dos espíritos.

 

Nhamandu Tenondegua, com sua sabedoria divina, gerou também os seus filhos guardiões das fontes divinas:

Jakaira ru eterã, o future pai da neblina.

Karai ru eterã, o future pai das chamas.

Tupã ru eterã, o futuro pai do trovão, do vento e da brisa.

 

Em seguida, Nhamandu Tenonde, com o amor infinito e sabedoria divina, criou Nhamandu py’aguaxu xy eterã, aquele que seria a mãe divina de Kuaray, o Sol.

 

Nhamandu criou Yvy tenonde, a primeira Terra…

Da ponta de seu popygua, bastão insignia, uma pequena porção de Terra se estendeu em cima do oceano primitivo. Então Nhamandu Tenondegua, pela primeira vez, desceu de seu apyka, assento, e pôs seus pés nessa porção redonda da Terra...

Não via nenhum ser vivo, mas, de repente, avistou brotando, no centro dessa superfície, uma pequena arvore, Nhērumi mirim, que se ampliaria em floresta.

Nhamandu Tenondegua deu nome a esse espaço sagrado de Yvy Mbete, centro da Terra…

Quando terminou de gerar a Terra, estendeu-se a Floresta, ka’a. O primeiro grito de agradecimento foi o de Nhakyrã pytãi, cigarra vermelha…

 

Nas florestas não havia rios nem nascentes, então Nhamandu Tenondegua, com sua sabedoria divina, criou o protetor das águas, Yamã, girino, que fez mboapy meme para rakã apy, as seis maiores nascentes e seus afluentes, que se desdobrariam em milhares de vertentes.

 

Nhamandu Tenondegua viu que havia florestas, mas não planície ou campos naturais. Então criou Tuku ovy, gafanhoto azul, para ele pôr seus ovos na chão e fazer brotas os grandes campos e planícies.

 

Depois de ter criado tudo, Nhamandu terminou seu trabalho, Yvyrupa, a Terra. Com sua sabedoria divina, subiu até Oyva ropy, seu firmamento, para poder descansar e cuidar de suas criações.

 

Nhamandu Tenondegua disse para os seus filhos criarem seus próprios filhos na Terra…[os] jeguakava e jaxukava originários, atualmente conhecidos pelos juruá, não-indígenas, como Guarani.

 

Oguata porã… os caminhos revelados.

 

Nossos antigos parentes… saíram de Yvy mbyte, centro da Terra, e caminharam em direção ao sol poente para chegar á margem do mar. Eles decobriram pela frente… Ytajekupe, Cordilheira dos Andes, muralha de pedras… [e] Yvyjuky, terra feita de sal. Ore retarã ypykuery, nossos antigos parentes, não permanceram ali porque não era bom para a plantio, nem mesmo bom para formar o tekoa, e continuaram a caminhar…

 

Xeramõi convoca a todos para continuarem a caminhada para alcançar Tenondere [o leste], onde nasce o sul, em Yy Ramõi, chamado também de Para Guaxu, o grande mar, o Oceano Atlântico...

Nossos parentes originários, levavam com eles suas variedades de plantas originais, que foram colocados por Nhanderu Tenondegua em Yvy mbyte: Jety mirīi, batata doce original, avati ete’i, milho verdadeiro, manduvi mirīi, amendoim original, mandyju mirīi, algodão original, mandi’o mirīi, espécie de mandioca... pety, fumo, ka’a, erva-mate, e muitas outras plantas. Levavam em forma de alimentos e sementes.

 

Para Ore retarã ypykuery, Nossos parentes originários, chegar à beira do Oceano Atlantico era a grande esperança, porque Nhanderu havia revelado que ali era Yvy porã, terra boa e aconchegante. Este lugar... chamamos Para guaxu rembe, porque Para é ‘oceano’, guaxu é ‘grande’ e rembe é ‘margem’. Assim como Yvy mbyte, o centro da Terra... Para guaxu rembe também é de muita inspiração para nos fortalecermos espiritualmente, para formar tekoa, onde acontece nosso modo de vida, para viver o nhandereko, nosso modo de ser, para ter yvy poty aguyje, agricultura e plantio com abundância, e para oupyty aguã Nhanderu arandu, para alcançar a sabedoria divina, a morada dos Nhanderu.

 

E assim... os jeguakava e jaxukava adquiriam e transmitiriam aos seus descendentes uma vasta sabedoria milenar sobre as florestas que formam a Mata Atlântica para enriquecer Yvyrupa, nosso território tradicional.

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Trecho editado do livro A Terra Uma Só: Yvy Rupa, de Timóteo Verá Tupã Popygua, Editora Hedra (São Paulo: 2017), pp. 13–48. O trecho foi editado por Freg J. Stokes com acompanhamento do autor. "A terra uma só (Yvy Rupa), foi escrito por Timóteo da Silva Verá Tupã Popygua, liderança guarani, para pessoas de todas as idades, contando o que aprendeu e pensou nos caminhos que percorreu pela Mata Atlântica, na América do Sul, junto ao seu povo Nhande’i va’e, conhecidos também como Guarani Mbya. As narrativas dos Guarani Mbya sobre a origem da terra, do ser humano, da linguagem humana e dos animais e plantas da Mata Atlântica foram documentadas e traduzidas pela primeira vez por León Cadogan em Ayvú Rapyta. Cadogan dedicou-se por mais de 40 anos à defesa dos direitos dos Guarani Mbya, por quem foi apelidado de Tupa Cuchuví Vevé. Ao longo de mais de uma década, o autor Timóteo e a organizadora Anita Ekman leram e discutiram as traduções do Avvy Rapta de Cadogan. Inspirada pelos poéticos comentários de Timóteo (que contrastava com o material de Cadogan e as histórias que havia escutado de seus avós e líderes espirituais), bem como sua necessidade de documentar e divulgar a luta pela terra Guarani e a preservação da Mata Atlântica (Ka’a porã), Ekman incentivou Timóteo ao desafio de ser o primeiro Guarani Mbya a contar diretamente em português, sem intermediário de um jurua (não indígena), sua versão da história do mundo e do seu povo." (Hedra).

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Timóteo Verá Tupã Popygua é pensador, escritor e professor de língua e cultura Guarani Mbyá. Cacique da aldeia Takuari, no Vale do Ribeira (Eldorado) estado de São Paulo e representante da Comissão Guarani Yvyrupa http://www.yvyrupa.org.br/. Seu primeiro livro Yvyrupa – A Terra Uma, organizado e ilustrado por Anita Ekman foi publicado em 2017 na Coleção Mundo Indígena pela Editora Hedra. Atualmente o autor está escrevendo sua segunda obra, dedicada a história da KA´A – As folhas sagradas (Erva Mate) e história dos Guarani na Mata Atlântica. A publicação conta com a organização e ilustração de Anita Ekman e mapas e prefácio de Freg J. Stokes e será lançada na Coleção Mundo Indígena pela Hedra no segundo semestre de 2021.

Timóteo Verá Tupã Popygua.jpg

Timóteo Verá Tupã Popyguá

Aldeia Takuary, Eldorado, SP, Brazil.

Foto de Edu Simões

Da série: Kaa'guy Porã, 2015

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